sábado, 7 de abril de 2012

Epistemologia cibernética: Guaraná Kuat, câncer no cu e a fofoca política


    Primeiro, quero pedir desculpas pelo título e dizer que foda-se o politicamente correto, afinal minha tia mais querida tem câncer de pulmão e não é tratável. E aí? Para os mais abertos ao diálogo, digo que tabus nunca fizeram bem para o pensamento, e como vocês verão, o texto de hoje trata precisamente da repetição de ideias sem questionamento prévio.
    Isso dito, inicio.
    Esses dias estão repassando um e-mail sobre o Guaraná Kuat ter sido apontado como causa de falta de atividade renal e tumores no reto. Segundo a mensagem, 23 pessoas teriam passado pelo Hospital das Clínicas, vítimas da tal intoxicação. O "Renomado Instituto Fleury" teria apontado a presença de substâncias X, Y e Z que provocam os efeitos supra-citados. A Coca-Cola teria assumido a culpa e se comprometido a indenizar as vítimas. O texto fecha com uma mensagem que apela para a empatia e para a fé do leitor exigindo que ele repasse a mensagem para seus entes queridos.
    Por que tantos acreditam nesta mensagem? Não que eu não ache que isso seja possível. Mas onde estão os dados comprovando as acusações? Temos dois nomes que inspiram autoridade, nomes de substâncias obscuras para qualquer leigo e uma suposta retratação da Coca-Cola, símbolo do capitalismo selvagem (pelo menos para a maioria das pessoas) insinuando que "se eles admitiram, é porque não há como negar".
    Porém, não há nenhum link para uma nota oficial da empresa sobre o assunto, nem para a suposta pesquisa do Instituto Fleury. Mesmo assim, a mensagem se repete indefinidamente, gerando indignação no leitor e propaganda negativa para a marca.
    Antes que me acusem de estar defendendo a Coca-Cola, devo dizer por que me interessei em escrever sobre isto; e foi simplesmente pelo fato de não saber responder qual é o maior problema: os internautas repassando informações, creio eu, falsas sem checar sua veracidade antes, ou se é a total falta de ética observada em todos os setores da sociedade, que torna crível e corriqueira qualquer notícia a respeito da falta de responsabilidade de um gigante do mercado, cuja negligência em testar devidamente seu produto tenha causado o desenvolvimento de doenças graves entre seus consumidores.
    Casos parecidos acontecem todos os dias. Um dos que mais me impressionou foi um citação erroneamente associada. A tal citação, proferida pelo governador do Ceará, Cid Gomes, é a seguinte: “Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado, eles pagam mais? Não. O corporativismo é uma praga, no meu ponto de vista.” Ele disse isso durante a greve dos professores no estado, no ano passado. Completou dizendo que em um mandato como prefeito, triplicou o salário dos professores, mas isso não resolveu o problema. Disse ainda que a solução é demitir quem não trabalha direito.
    Essa história rodou e rodou por aí. Logo, estava em um texto de um professor, reivindicando melhores condições de trabalho. Detalhe: o texto é deste ano, o professor em questão é de Goiás e copiou, fora de contexto, o início da fala de Cid Gomes ("Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado"), creditando a fala ao governador do estado de Goiás (!) e respondendo: "Quem acha que o Sr. Governador deve doar seu salário e trabalhar por gosto, compartilhe!"
    Finalmente, a frase ficou famosa. Duas semanas depois, qual é a minha surpresa ao ver uma foto do Geraldo Alckmin, com a frase colada, no mesmo formato, entre aspas, e sob ela a mesma resposta com o mesmo pedido: "Se vocês acham que o governador Geraldo Alckmin deveria doar seu salário e trabalhar por amor, compartilhe!"
    Devo dizer, porém, que não estou defendendo nenhum dos três políticos. Acredito que, por mais que seja fora de contexto, Cid Gomes está longe de ser um defensor dos direitos dos professores, e a mensagem combina perfeitamente com o questionamento a respeito da discrepância entre os salários dos políticos e dos professores, e se aplica aos três governadores - embora o tema seja tratado com o mais elevado grau de simplicidade pela maioria dos que discutem sobre ele: o salário dos professores no Brasil é muito baixo e o dos governantes é muito alto em relação ao ideal para uma e outra posições, mas o que para muitos é piada - "INVERTAM ESSES VALORES" - vira palavra de ordem na boca de tantos outros.
    De tudo isto, fica uma ideia muito simples: a negligência dos detentores do poder em relação ao resto da sociedade é um ponto a ser amplamente debatido, e combatido; porém, essa prática não se dá no campo da repetição de ideias anônimas. Além de não aprofundar o assunto, ao fazermos isso caímos em contradição em relação aos ideais que supostamente estamos defendendo, e ajudamos a fortalecer as maiores armas que nossos contendores têm contra nós: a desinformação e a mentira.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pensando um pouco no The Wall


Entre os roqueiros das novas gerações, o Pink Floyd é o ponto de partida em comum para muitas pessoas que começaram, como eu, a procurar sua identidade cultural dentro do rock durante a adolescência. Embora essa experiência tenha gerado uma legião de babacas - como o bêbado imbecil que berrava do meu lado ontem à noite, gritando "Chupa, Maria Rita" quando a pirotecnia do show impressionava, a grande parte de nós, fãs de rock, devemos nos lembrar do espírito que impulsionou o estilo desde o começo: a recusa em se enquadrar, a auto-afirmação - a princípio como uma parcela revolucionária da população, que hoje em dia deu lugar à auto-afirmação de cada um de nós, perdidos na multidão que sofre com as perenes tentativas de remodelagem que o mundo luta para continuar nos impondo. Foi esse o tema do assunto deste post: O show do Roger Waters, apresentando o The Wall no dia 1º de abril de 2012.
Para mim, e para muitos outros, o The Wall representa um grito desesperado que vem de fora, ecoando indiretamente nos muros em torno de cada um de nós quando gritamos junto. A obra descreve a jornada de um ser humano em seu processo castrativo ao longo da vida, desde a infância. A sociedade manda seu pai para morrer na guerra; sua mãe, destruída pelo mesmo processo, tenta evitar que o filho sofra sendo consumido pelo mesmo mundo, e sua tentativa de proteção acaba trabalhando a favor do sistema. Isso nos faz lembrar de que, apesar de a narrativa ser focada em um indivíduo, o "show" não foi feito só para ele; ele é apresentado a todos nós, há muito tempo, e todos nos tornamos "tijolos no muro", contribuindo para alienar os outros.
A escola vem para nos preparar para o mundo - e no mundo em que vivemos, isso significa apagar-se e reproduzir o que nos ensinam. Como esperar algo diferente, se nossos professores também são parte da multidão que nos cerca, sujeitos a ela como nós?
Ele encontra o amor. Infelizmente, o ser amado, a última esperança, é uma vítima como ele, contribuindo para assentar os últimos tijolos, e deixando-o sozinho atrás do muro que ajudou a construir.
Estamos na metade da história. Crescemos. O muro está erguido, o bombardeio ideológico cumpriu seu papel. Agora, lutamos tentando sair, buscando alguém que nos compreenda. Mas como encontrar isso, se todos estão presos atrás de seus próprios muros? Nos prendemos a nostalgias. Nosso amor da infância, o que aconteceu com ele? O "e se" nos preenche. Negamos que foi tudo inevitável na nossa falta de esperança de reverter o processo, buscando as últimas janelas que sobraram: as lembranças de quando a parede ainda não estava completamente erguida.
Não dura muito tempo. Afinal, "quem vive de passado é museu". O que resta? Entorpecermo-nos. Tentamos quebrar o muro dentro de nós quebrando a nós mesmos, pouco a pouco. Destruindo nossos corpos, minando a nossa consciência, rasgando janelas em nossa pele.
Cansamos da auto-destruição. Mas ainda precisamos destruir. Por fim, abraçamos uma ideologia; o martelo, o símbolo de liberdade, do desejo de quebrar o muro e da nossa frustração por não conseguir, acaba se tornando uma bandeira de ódio contra os outros. Se não resolveram por nós, vamos resolver na marra! E assim surgem os nazistinhas, que se entregam à marcha patológica pela destruição. As novelas nos mostram a face do absurdo condenando os doentes - não há outra palavra - que perseguem as minorias e realizam ataques de ódio. Mas não chegam ao centro da questão: quem produziu tudo isso! Os que apontam dedos e condenam os criminosos se esquecem de que foram parte integrante da linha de produção que construiu essas aberrações, algumas mais condenáveis e outras menos. Exaltamos aqueles que conseguem esconder seus podres efetivamente, e buscamos "justiça" perseguindo a escória da sociedade, o câncer do mundo, pedindo a pena de morte para eles. Soa familiar?
O caçador de vermes desiste da luta. Finalmente é pego, se entrega ao desespero e às tendências suicidas. Mas ele ainda tem que enfrentar seu julgamento. Como evidência de sua podridão, são chamados a depôr todas as pessoas importantes na vida do réu: mãe, namorada, professor. Assim, essas pessoas, vítimas, marionetes, algumas das ferramentas de controle que contribuíram para o momento presente, mostram a "verdade": "Ele era podre desde o início, me esforcei mas não pude corrigí-lo", diz o professor. Vejam a mulher dele! Vejam essa mulher destruída, que criatura vil poderia tê-la transformado nesse poço de ódio? E, finalmente, vejam o que ele fez com a mãe dele!
Até que vem a conclusão inevitável: "Esse muro não presta. Derruba". Se não derrubamos o muro de uma vez por todas, satisfazendo os brados da multidão que pede a cadeira elétrica, substituímos o muro podre por outro muro, dessa vez físico. Todos nós, porém, criminosos ou não, temos de derrubar o muro. Não sabemos o que está atrás dele, por estarmos dentro dele há tanto tempo. Mesmo com o muro caído, como saber por onde começar? O que faz parte do muro e o que não faz, no mundo lá fora? O que podemos aproveitar dentre tudo o que existe?
Para mim, a resposta é simples: meu muro já foi erguido, talvez já tenha caído. Não posso me salvar. Só posso lutar para que outros muros parem de ser erguidos.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Dias de Faxina

Estão "limpando" a Cracolândia, e ninguém acha importante ressaltar que a palavra "limpeza" se refere ao lixo nas ruas e não aos dependentes químicos, porque, na verdade, ninguém acha necessário separar as duas coisas.

Estão chovendo comentários sobre como "essas pessoas estão causando sofrimento à sua família, apesar da disponibilidade de centros de recuperação oferecidos pelo Estado". Que centros de recuperação? Os únicos grupos que conseguem recuperar um número minimamente expressivo de usuários são as clínicas mantidas por igrejas evangélicas sem nenhum apoio do Estado, que transformam os zumbis do crack em zumbis de Cristo, vendendo canetas no ônibus.

Mesmo que um ou outro agente de saúde da prefeitura perambule pelas ruas da Luz e consiga recuperar um dependente ou outro, qual é a assistência oferecida pelo Estado às famílias deles, para que elas ajam antes que ele chegue ao fundo do poço, em um país em que R$ 2000,00 são pouco dinheiro quando se precisa internar um dependente químico? Isso em São Paulo - CAPITAL, é importante explicitar - pois há lugares do Brasil em que é preciso viajar centenas de quilômetros pra encontrar tratamento. 

Quando a família tem a sorte de ter algum dinheiro, muitas vezes só tem o suficiente para pagar clínicas que só aceitam o paciente depois que ele passa pela desintoxicação. Onde, eu pergunto? No porão de casa? No caso de se encontrar uma clínica que faz desintoxicação, muitas vezes o paciente passa toda a estadia tendo como único auxílio psicológico a sua dose diária de Haldol.

E tentam alavancar uma discussão, ainda por cima, sobre como é um absurdo pensar em legalização das drogas diante desse quadro, esquecendo-se de que a legalização seria fruto e causa de uma abordagem menos hipócrita e mais eficiente em relação à dependência química.

Depois que tudo isso acabar, eu, que moro no Santa Cecília, vou poder andar da Sala São Paulo até a minha casa à noite sem medo. Mas as famílias de usuários podem esperar sentadas se acham que vão conseguir tratá-los pelo SUS. Pra quem não tem dinheiro, aquele tripé em que se apóia o tratamento do Narcóticos Anônimos - que diz que a dependência química tem três fins possíveis: CLÍNICA, CADEIA OU CAIXÃO - continuará manco da sua primeira base.